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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A visita

           Na primavera tinha torcido o pé, não pude ir à praia. Então fiquei na casa da minha tia, isto eu tinha entre 15 a 16 anos. Um vizinho novo, quer dizer, que havia chegado há pouco tempo na cidade, apareceu naquela manhã. 

         Tocou a campainha e fui atender. Nunca entendi aquele sorriso, até porque líderes religiosos podem preservar seus desejos mascarando-os com certas benevolências. São nestes aspectos tão subjetivos que qualquer reação objetiva pode te levar a infernos que apesar de te condenarem, são sempre disfarçadas de bondades.

E aquele padre parecia quase um santo, ajudava na paróquia e cuidava de assuntos de ordem emocional e espiritual. Também fazia trabalhos sociais e movimentava as beatas pra ajudar aos necessitados do bairro. E as beatas... há, estas sempre estavam virgens, mesmo que casadas. Traziam consigo uma aliança com o divino, materializado na figura daquele padre. 

         Mas naquela manhã, por mais tímida que parecesse, não tive como deixar de perceber o olhar daquele padre sobre mim. Havia na sala da casa da minha tia uma réplica destas pinturas renascentistas, representando a virgem Maria. Ele olhou para aquela tela, olhou para mim e sorriu:
_ Parece você, menina. Quem sabe tenha o chamado para ser freira. 

         Enquanto o padre me olhava, usava a santa como desculpa. A réplica estava com as pernas quase todas a mostra, assim como eu naquela manhã. Vestia um pijama curto, coisas de uma adolescente distraída que acabara de acordar. Sem preocupar-me com a roupa, não sabia que aquele sujeito viria naquela manhã visitar-me, quando já não havia mais ninguém na casa. 

Senti medo em estar com ele e a réplica desnuda da santa, que antes me trazia paz, mas agora dela me tornava cúmplice. Na dúvida, eu e ela é que seríamos culpadas. A imagem desnuda tornou-nos quase pornográficas, uma incitação para o olhar de aparente devoção que vinha do padre sobre nossas pernas e que conversava imageticamente com a tal santidade.

Constrangida, senti nojo e raiva, mas sem entender, também me veio a culpa. Hoje percebo que o sentimento de culpa foi em julgar a bondade do padre, seria o santo contra a réplica da santa, o santo contra a descabeçada com as pernas de fora. Raiva e nojo, por se uma adolescente condenada aos maus pensamentos. Novamente, a culpa viria sobre mim e até mesmo sobre a santa.

         O que me pareço, com virgem Maria? Aquela imagem era quase como se eu e ela estivéssemos numa vitrine. A santa não parecia tão santa _ quem é você pra julgar a benevolência de um padre que faz uma simples visita? A religião tecia em minha mente um emaranhado de dúvidas que com o tempo me deixariam ainda mais confusa. 

          A agressão persistiu pelo fato de que não pude argumentar nem me defender _ você e sua imaginação fértil. Só me restava o medo em estar com aquele sujeito salivante disfarçando sorrisos de bondade.

          Finalmente o inferno acabou e ele foi embora, saiu com aquele olhar bobo e pálido de santidade, de quem realizou uma boa ação. Fez uma prece que mais parecia outra coisa qualquer e antes de ir embora, olhou para as minhas pernas e para as da santa. Insistentemente sorriu:
_ Que benção poder conversar contigo, menina. Pense na oportunidade em ser freira, acho que contigo.

         Seres religiosos são quase sempre incontestáveis. Intocáveis, mas tocam nas intimidades alheias sem pedirem licença. E mesmo que algo fuja a tal postura de espiritualidade, até que se prove ao contrário, no máximo foi a maldade dos teus olhos.

          Depois que o padre foi embora chorei muito e quis rasgar a tela da santa. Naquele verão só usei calça comprida e não entrei mais naquela sala, fiquei desprotegida àquele cômodo incômodo.

       Eu e a santa? Mais uma vez sinto-me agredida. Até agora quando passo numa igreja ainda penso no olhar da virgem Maria com cristo bebezinho, suas pernas e seios desnudos conversando comigo. Era puro, até que houve esta tal visita.

      Se o termo virgindade é assim tão amplo como dizem, meus pensamentos perderam a pureza naquele instante. Não o diabo, mas a santa que me carregue com todo o peso desta lembrança... que ela me leve pra bem longe desta bondade indecente. 

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